Iahweh, teu Deus, vai conduzir-te a uma terra excelente, cheia de torrentes, de fontes e de águas profundas que brotam nos vales e nos montes; uma terra de trigo e de cevada, de vinhas, de figueiras, de romãzeiras, uma terra de óleo de oliva e de mel, uma terra onde não será racionado o pão que comeres, e onde nada faltará; terra cujas pedras são de ferro e de cujas montanhas extrairás o cobre. Comerás à saciedade, e bendirás Iahweh, teu Deus, pela boa terra que te deu (Dt 8,7-10).
Quero começar minha contribuição com este texto, lindo e entusiasmante na sua simplicidade, como costumam ser todos os sonhos dos pequeninos e dos pobres: uma terra boa, rica de águas, terra que produz comida em abundância; terra rica em minérios, úteis para fabricar instrumentos de trabalho, para a vida da casa e até para a guerra
Mineração é benção: faz parte da promessa e da terra prometida. Contanto que…
Esta pérola preciosa é encastoada numa palavra que nos desafia a rever nossos conceitos, a reformar nossas pretensões e a avaliar as nossas escolhas, a nos converter. Este sonho só será possível, realizar-se-á somente
“guardareis todos os mandamentos que hoje vos ordeno para cumpri-los; para que vivais e vos multipliqueis e entreis e possuais a terra que Iahweh jurou a vossos pais” (Dt 8,1).
A concretização do sonho depende de como vivemos nossa realidade, uma realidade que deve ser marcada pela “obediência” aos mandamentos do SENHOR.
Para isso é necessário “recordar”, trazer e manter sempre no coração os passos da caminhada que fizemos no deserto, quando nada deste sonho estava ao nosso alcance, quando duvidamos do amor presente de Deus, quando pensamos que ele estava nos castigando, quando aprendemos que a vida não dependia de ter tudo aquilo, mas de construir novas relações com Deus e entre nós:
Lembra-te de todo o caminho por onde o Senhor te conduziu durante esses quarenta anos no deserto, para humilhar-te e provar-te, e para conhecer os sentimentos de teu coração, e saber se observarias ou não os seus mandamentos. Humilhou-te com a fome; deu-te por sustento o maná, que não conhecias nem tinham conhecido os teus pais, para ensinar-te que o homem não vive só de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor. Tuas vestes não se gastaram sobre ti, e teu pé, não se feriu durante estes quarenta anos. Reconhece, pois, em teu coração, que assim como um homem corrige seu filho, assim te corrige o Senhor, teu Deus (Dt 8,2-5).
Quarenta anos, maneira de a bíblia dizer: a vida toda. Quarenta: como os dias da caminhada de Elias, no deserto (1Rs 19,8); quarenta: como os dias e as noites que Jesus passou jejuando no deserto para, depois, ser tentado por Satanás (Mt 4,1-2). O verdadeiro encontro com Deus se dá no deserto.
Eis que eu a atrairei, e a levarei para o deserto e lhe falarei ao coração. E lhe darei as suas vinhas dali e o vale de Acor, por porta de esperança; e ali cantará, como nos dias de sua mocidade e como no dia em que subiu da terra do Egito (Os 2,14-15).
A terra só será terra prometida e não terra maldita, se a gente lembrar a experiência do deserto e seguirmos as três orientações fundamentais para a vida do povo: 1ª guarda os mandamentos de Iahweh teu Deus, 2ª para andares nos seus caminhos e 3ª para o temeres (Dt 8,6): E isso durante a vida toda, todos os dias, porque é fácil demais, nos tempos da fartura, esquecer o nosso Deus e seu projeto.
Guarda-te de esquecer Iahweh, teu Deus, negligenciando a observância de suas ordens, seus preceitos e suas leis que hoje te prescrevo. Não suceda que, depois de teres comido à saciedade, de teres construído e habitado formosas casas, de teres visto multiplicar teus bois e tuas ovelhas, e aumentar a tua prata, o teu ouro e o teu bem, o teu coração se eleve, e te esqueças de Iahweh, teu Deus, que te tirou do Egito, da casa da servidão. Foi ele o teu guia neste vasto e terrível deserto, cheio de serpentes ardentes e escorpiões, terra árida e sem água, onde fez jorrar para ti água do rochedo duríssimo; foi ele quem te alimentou no deserto com um maná desconhecido de teus pais, para humilhar-te e provar-te, a fim de te fazer o bem depois disso. Não digas no teu coração: a minha força e o vigor do meu braço adquiriram-me todos esses bens. Lembra-te de que ,é o Senhor, teu Deus, quem te dá a força para adquiri-los, a fim de onfirmar, como o faz hoje, a aliança que jurou a teus pais. Se, esquecendo-te do Senhor, teu Deus, seguires outros deuses, rendendo-lhes culto e prostrando-te diante deles, desde hoje vos declaro que perecereis com toda a certeza. Como as nações que o Senhor exterminou diante de vós, assim também perecereis vós, se não ouvirdes a voz do Senhor, vosso Deus (Dt 8,10-20).
E foi o que aconteceu e continua acontecendo. A simbologia bíblica não tem dúvida: è da descendência de Caim que saem os que sabem fazer “toda obra de cobre e de ferro” (Gn 4,22). Nos textos bíblicos é comum identificar o “progresso” e o “crescimento” com a opressão sobre o povo e a violência. O número 666 – que no livro da Apocalipse indicará a besta, a grande ameaça para os seguidores de Jesus – está indissoluvelmente ligado aos talentos de ouro que todo ano chegavam ao palácio de Salomão provindo de suas famosas minas (1Rs 10,14). Controlar a produção das minas de ferro, de cobre, de ouro e de prata era sinal inequívoco do poder imperialista e dominador, era sinal de “grandeza”:
Judas conheceu o nome dos romanos. Como eles eram poderosos guerreiros (…) Falaram-lhe também das façanhas que realizaram (…) e de tudo que fizeram na região da Espanha, onde conquistaram as minas de prata e ouro que lá existiam (1Mc 8, 1.3).
A apocalíptica destruição de Babilônia – símbolo da Roma imperial – levará ao choro os mercadores da terra, porque ninguém mais compra as suas mercadorias: carregamentos de ouro e de prata e de pedras preciosas (Apoc 18,11s).
Esta realidade de violência comportava a exploração de um número incalculável de escravos nas minas, nos latifúndios e na navegação a remo: um sofrimento indizível que encurtava radicalmente a vida dos escravos . E tudo em nome de um poder econômico e político imperialista, legitimado, ideologicamente, pelo conjunto da filosofia grega mais clássica, segundo a qual o escravo era um ser sub-humano cuja realização plena consistia em obedecer ao amo. O amo – que tinha desenvolvido as qualidades da ‘alma’ – era, por isso, um ser superior que tinha o direito e a obrigação de ‘governar’ o escravo, assim como a alma devia governar o corpo; os humanos deviam governar a terra e os animais; o homem devia governar a mulher; o sábio devia governar o bruto. Era a lei da natureza, lei eterna e imutável que nem os deuses podiam modificar. O livro deuterocanônico de Sirácida é o porta-voz bíblico desta ideologia de dominação.
Para o jumento o feno, a vara e a carga. Para o escravo o pão, o castigo e o trabalho. O escravo só trabalha quando corrigido, e só aspira ao repouso; afrouxa-lhe a mão, e ele buscará a liberdade. O jugo e a correia fazem dobrar o mais rígido pescoço; o trabalho contínuo torna o escravo dócil. Para o escravo malévolo a tortura e as peias; manda-o para o trabalho para que ele não fique ocioso, pois a ociosidade ensina muita malícia. Ocupa-o no trabalho, pois é o que lhe convém. Se ele não obedecer, submete-o com grilhões, mas não cometas excessos, seja com quem for, e não faças coisa alguma importante sem ter refletido. (Sir 33,25-30)
É por esta discutível “sabedoria” que alguém pode chegar a torturar seu escravo “sem cometer excessos seja com quem for”.
Neste contexto, vale a pena considerar as palavras de Jó que denuncia a violência cometida contra os pobres da terra, reduzidos a escravos, sem terra, sem casa, sem roupas (Jó 24,1-11). E, logo em seguida, descreve, em precisos e preciosos detalhes, o grande trabalho realizado nas minas mas, com fina ironia, o ridiculariza: onde está a jazida da sabedoria e da inteligência?
Na verdade, há minas de onde se extrai a prata e lugar onde se refina o ouro. O ferro tira-se da terra e da pedra se funde o cobre. O homem põe fim às trevas e esquadrinha até o extremo, a rocha escura e na sombra da morte. Longe dos lugares habitados ele abre galerias que são ignoradas pelos pés dos transeuntes; suspenso, vacila longe dos humanos. A terra, que produz o pão, é sacudida em suas entranhas como se fosse pelo fogo. As rochas encerram a safira, assim como o pó do ouro. A águia não conhece a vereda, o olho do abutre não a viu; os altivos animais não a pisaram, o leão não passou por ela. O homem põe a mão no sílex, derruba as montanhas pela base; fura galerias nos rochedos, o olho pode ver nelas todos os tesouros. Explora as nascentes dos rios, e põe a descoberto o que estava escondido.
Mas a sabedoria, de onde sai ela? Onde está a jazida da inteligência? O homem ignora o caminho dela, ninguém a encontra na terra dos vivos.
O abismo diz: Ela não está em mim. Não está comigo, diz o mar. Não pode ser adquirida com ouro maciço, não pode ser comprada a peso de prata. Não pode ser posta em balança com o ouro de Ofir, com o ônix precioso ou a safira. Não pode ser comparada nem ao ouro nem ao vidro, ninguém a troca por vaso de ouro fino. Quanto ao coral e ao cristal, nem se fala, a sabedoria vale mais do que as pérolas. Não pode ser igualada ao topázio da Etiópia, não pode ser equiparada ao mais puro ouro. De onde vem, pois, a sabedoria? Onde está a jazida da inteligência? Um véu a oculta de todos os viventes, até das aves do céu ela se esconde. Dizem o inferno e a morte: Apenas ouvimos falar dela. Deus conhece o caminho para encontrá-la, é ele quem sabe o seu lugar, porque ele vê até os confins da terra, e enxerga tudo o que há debaixo do céu. Quando ele se ocupava em pesar os ventos, e em regular a medida das águas, quando fixava as leis da chuva, e traçava uma rota aos relâmpagos, então a viu e a descreveu, penetrou-a e escrutou-a. Depois disse ao homem: O temor do Senhor, eis a sabedoria; fugir do mal, eis a inteligência. (Jó 28,1-28)
Voltamos assim, ao nosso primeiro texto: toda atividade humana – inclusive a mineração – só adquire sentido e valor quando feita no “temor de Iahweh” e à luz do “temor de Iahweh” deve ser avaliada.
Esta deve ser a pré-ocupação da teologia.
O horizonte se abre à nossa frente e – como já o foi o passado – torna-se paradigma da nossa caminhada de hoje. Entre memória e utopia se desenrola a nossa estrada, traçada no temor de Iahweh.
No horizonte está a meta final do nosso caminhar. Uma cidade maravilhosa:
A grande cidade, a santa Jerusalém, que de Deus descia do céu. E tinha a glória de Deus; e a sua luz era semelhante a uma pedra preciosíssima, como a pedra de jaspe, como o cristal resplandecente. E tinha um grande e alto muro com 12 portas, e nas portas 12 anjos, e nomes escritos sobre elas, que são os nomes das 12 tribos dos filhos de Israel. Do lado do levante tinha 3 portas, do lado do norte 3 portas, do lado do sul 3 portas, do lado do poente 3 portas. E o muro da cidade tinha 12 fundamentos e neles os nomes dos 12 apóstolos do Cordeiro. E aquele que falava comigo tinha uma cana de ouro, para medir a cidade, e as suas portas, e o seu muro. E a cidade estava situada em quadrado; e o seu comprimento era tanto como a sua largura. E mediu a cidade com a cana até 12.000 estádios; e o seu comprimento, largura e altura eram iguais. E mediu o seu muro, de 144 côvados, conforme a medida de homem, que é a de um anjo. E a construção do seu muro era de jaspe, e a cidade de ouro puro, semelhante a vidro puro. E os fundamentos do muro da cidade estavam adornados de toda a pedra preciosa. O primeiro fundamento era jaspe; o segundo safira; o terceiro calcedônia; o quarto esmeralda; o quinto sardônica; o sexto sárdio; o sétimo crisólito; o oitavo berilo; o nono topázio; o décimo crisópraso; o undécimo jacinto; o duodécimo ametista. E as 12 portas eram 12 pérolas; cada uma das portas era uma pérola; e a praça da cidade de ouro puro, como vidro transparente (Apoc 21,10-21).
Quase todos os produtos da mineração servem para fazer linda, maravilhosa a nossa cidade. Quase todos: faltam o ferro, o cobre e a prata, tudo que era usado para o trabalho, a guerra, o comércio, para comprar e vender. Só tem o que serve para adorno, para a beleza, para a sedução.
Sem templo, sem armazém, sem mar. Do mar sobram só as 12 pérolas que são as 12 portas da santa Jerusalém.
E, por isso, sem lágrimas:
E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis a tenda de Deus entre os homens, e com eles estará na tenda, e eles serão o seu povo e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus. E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas (Apoc 21,3-4).
Em toda esta visão está o elemento que nos ajuda entender qual é o sinal único e decisivo para saber se nosso caminho foi o caminho da verdadeira sabedoria, trilhado no temor de Iahweh: todos os números são derivados do número 12 que, aqui, se repete por 7 vezes. É a plenitude, a realização definitiva daquilo que o número 12 sempre significa nos textos bíblicos: o povo, os 12 anjos, as 12 tribos de Israel, os 12 apóstolos.
O que, porém, chama mais atenção é o tamanho da cidade: um quadrado cujos lados medem 12.000 estádios. Aos nossos ouvidos, acostumados com a medição métrica, este tamanho só tem valor pelo número 12. Mas aos ouvidos dos que escutavam esta profecia, ressaltava com clareza: 12.000 estádios (1=185 m.) são 2.220 quilômetros. É a distância linear de Roma a Jerusalém! E, no centro, Patmos: a ilha do Egeu onde João está preso!
Não se trata de uma cidade, não é um lugar privilegiado, sagrado, separado, bonito. A nova Jerusalém é um quadrado que cobre todo o império romano oriental. Por isso, não vai haver mar. O símbolo do imperialismo explorador é substituído pelo rio de água da vida que sai do trono do cordeiro e atravessa a cidade.
È o projeto de uma nova sociedade: o reino de Deus que substitui o reino dos césares, do mercado e do militarismo. Roma (o império) e Jerusalém (o templo) que sempre quiseram ser o centro do mundo, ficam, agora, na periferia mais longínqua.
À luz desta profecia vamos esquadrinhar e avaliar as nossas experiências atuais no enfrentamento dos conflitos provocados pela mineração.
1. Nossa fidelidade aos pobres de Deus
O nosso ponto de partida não é a discussão do projeto de mineração em si – mesmo que isso precise sempre ser feito – mas a vida e os direitos dos pequenos. É a fidelidade profunda e irreversível aos “pobres de Deus” que determina o nosso agir.
Nós, missionários e companheiros desse povo sofrido, tentamos acompanhar essa luta pelos direitos sócio-ambientais e, junto com eles, cultivamos a esperança e a utopia (Pe. Dario).
O momento é grave e delicado, aumenta a urgência e importância de definições e estratégias e posicionamentos claros na perspectiva de assegurar a vida e os direitos dos povos indígenas (Egon).
Foi então que a Articulação se entendeu como um grupo de serviço às comunidades, com o objetivo principal de fortalecer o protagonismo dos atingidos e atingidas na luta contra a mineração de urânio e fosfato (Thiago).
As resistências e conquistas populares dos afetados pela mineração são manifestações contemporâneas do Deus do Antigo e do Novo Testamento, que faz história com seu povo, e das melhores tradições das Igrejas, o Deus que se revela salvador no clamor e na ação libertadora dos pobres, na preservação e no cuidado com os bens da Criação, cujo destino original é a honra e glória do Criador, amoroso de seus filhos e de sua obra (Ruben).
2. Nossa fidelidade à TERRA que é para todos e todas, de geração em geração
Nossa posição tem suas raízes na certeza que a TERRA e suas riquezas são para todos e todas que nela habitam e para todas as gerações
Muitos homens e mulheres simples foram chacoalhados por uma sequência descontrolada de ondas de desenvolvimento extrativista: a história dos últimos sessenta anos dessa região negou o protagonismo das comunidades locais, ignorou vocações produtivas integradas ao território e alternativas aos ciclos de saque dos recursos locais, mobilizou grandes massas de pessoas desenraizadas de suas regiões e forçadas a migrações em busca de trabalho não qualificado, devolveu hoje territórios com uma urbanização descontrolada, um tecido social extremamente frágil e marcado pela violência, uma total ausência da cultura do cuidado para com o outro e a vida.
Às vezes parece, nessas regiões, que a mãe terra violada não tenha mais filhos que a reconheçam, mas usuários que só querem aproveitar dela (Pe. Dário).
“Nós sabemos que existem muitos interesses, mais fortes do que políticos, para fazer a mineração em nossa terra. São interesses de quem tem muito dinheiro, de quem quer ganhar muito mais dinheiro (…) Não somos apenas nós, povos indígenas, que vivemos na nossa terra. Vocês querem perguntar a todos os moradores da floresta o que eles acham sobre a mineração? Então perguntem aos animais, às plantas, ao trovão, ao vento, aos espíritos xapiri, pois todos eles vivem na floresta. A floresta também pode se vingar de nós, quando ela é ferida.
Vocês falam que somos pobres e que nossa vida vai melhorar. Mas o que vocês conhecem da nossa vida para falar o que vai melhorar? Só porque somos diferentes de vocês, que vivemos de forma diferente, que damos valor para coisas diferentes, isso não quer dizer que somos pobres. Nós Yanomami temos outras riquezas deixadas pelos nossos antigos que vocês, brancos, não conseguem enxergar: a terra que nos dá vida, a água limpa que tomamos, nossas crianças satisfeitas. Vocês brancos pensam que nós somos pássaros, ou somos cotias, para nos darem apenas o direito a comer os frutos que nascem em nossas terras? Não pensamos as coisas de forma dividida, pensamos na nossa terra-floresta como um todo. Se vocês destruírem o que está abaixo do solo, tudo que está acima também sofrerá” (Egon).
Sabemos que este modo de vida está ameaçado por esta mineração. Embora as empresas afirmem que nenhuma família será removida do local, mas os impactos desta mineração, aos poucos, tornarão inviável a permanência sadia e digna das famílias na região. As famílias se sentirão forçadas a deixar a terra onde nasceram e cresceram, onde criam seus filhos e produzem seus alimentos. Outras verão a terra conquistada com muita luta sendo degradada, poluída, contaminada com poeira e rejeitos radioativos. Camponeses e camponesas que residem nessa região estão aprendendo como conviver melhor com o clima semiárido, o bioma caatinga; a implementar pequenas tecnologias sociais de produção, mas grandes nos resultados; a reflorestar o espaço e cuidar melhor dos bens naturais; a identificar quais os animais e plantas adequados para o criatório e a plantação, gerando renda, sustentabilidade ambiental e social, soberania e protagonismo. Há muito ainda para avançar, mas não podemos deixar que uma mineração acabe com todas essas conquistas. (Thiago)
Imaginem-se os conflitos e as injustiças ambientais em algumas regiões mais populosas e com o volume de rejeitos que esta exploração vai acarretar… A agravá-los ainda mais, as obras público-privadas de infraestrutura para viabilizar esta exploração, como a Ferrovia de Integração Oeste-Leste, que parte do estado do Tocantins e atravessa o estado da Bahia por mais de 1.500km, e o Porto Sul no litoral em área preservada de Mata Atlântica. Só comunidades quilombolas, quase todas identificadas, mas sem regularização de seus territórios, são 50 na Bahia e 16 no Tocantins por dentro dos quais a ferrovia está passando. Uma das mais sérias ameaças, já comprovada em alguns lugares é sobre os mananciais de água (“um território ferrífero é também aquífero”) , um comprometimento cujas consequências já se podem imaginar, pela atual crise hídrica que assola o país. Por si só, as mudanças climáticas, evidentes nas alterações hidrológicas em curso, bastariam para exigir mais cuidado em bulir no corpo vivo da terra. (Ruben).
Ecologia e economia tem a mesma origem na palavra “casa” (oikos): de que casa falamos (logos) e quais são as suas regras (nomos). Nós acreditamos que não podem conviver uma casa-grande e uma senzala, mas uma tenda comum, onde todos e todas possam sentar ao redor da mesma mesa, partilhando do mesmo prato. Ecologia não pode ser reduzida a discutir o que fazer com o “quintal”. Podemos correr o risco de preservar o quintal em benefício só da casa-grande, deixando a senzala ao Deus dará.
Da ecologia (de que casa estamos falando) depende a economia (quais as regras da nossa casa) e, quero dizer, depende também, a teologia (de que Deus estamos falando).
Antes de sermos portadores de um projeto concreto, somo movidos por este critério de fidelidade. A nossa casa, a casa que o nosso Deus quer e preparou para nós é a cidade santa. Não aceitaremos regras que façam de nossa casa uma casa-grande. Aliás, Faraó, literalmente, significa casa-grande. De lá o nosso Deus sempre vai querer que nós saiamos.
3. Nossa fidelidade ao Deus dos e das pobres
A desproporção entre os polos que estão se enfrentado nos conflitos produzidos pela mineração é gritante. Às vezes nosso coração duvida: se Deus é o Deus dos pobres, porque os pobres continuam sendo derrotados pelas gigantescas forças do mal? O grito, tão presente nas páginas bíblicas, continua ainda hoje: Até quando?
A vida de Edvard se parece àquela de milhares de outros maranhenses e paraenses que desde o começo foram privados de sua própria história: outros a escreveram por eles. Ao longo do Corredor de Carajás, desde a maior mina de minério de ferro do mundo (Parauapebas-PA) até o porto marítimo mais fundo da América Latina (São Luís-MA), houve nos últimos sessenta anos uma sequência de ciclos econômicos e sociais extremamente violentos (…) Expulsão das famílias do campo, enfraquecimento da reforma agrária e dos projetos de agricultura familiar, contaminação por agrotóxicos e assoreamento das reservas de água no solo são algumas das consequências mais evidentes dessa última etapa da colonização do território (Pe. Dário).
Por outro lado o Estado brasileiro, em particular as elites políticas e econômicas ligados ao setor mineral, nunca deixaram de manifestar sua voracidade com relação ao potencial de minérios em territórios indígenas. Foram inúmeras as propostas de escancarar as terras indígenas, sejam elas vindas do poder Legislativo e do Executivo (…) A Terra Indígena Yanomami está praticamente toda ela loteada e requerida para prospecção e exploração mineral. São mais de 600 requerimentos. Além disso a presença de garimpeiros é permanente, apesar dos shows pirotécnicos feitos inúmeras vezes pelo governo, bombardeando as pistas de pouso. Em grande parte isso acontece por ter militares de altas patentes envolvidos na exploração mineral (Egon).
A pergunta que nos fazíamos era: como enfrentar um projeto tão grande, um consórcio entre o poder público e a iniciativa privada? Estava posto o desafio, já que as comunidades não tinham muitas informações sobre o projeto e teríamos que atuar no princípio da antecipação de riscos. Como acreditar em impactos que ainda não estão acontecendo, quando o discurso hegemônico era de que a mineração traria emprego, renda, desenvolvimento pra região? (Thiago)
Há no Congresso Nacional projeto de lei que propõe modificar a lei para permitir a mineração nestas unidades. Decretos presidenciais que titulam territórios quilombolas – mais raros atualmente – deixam aberta a possibilidade de serem minerados. Tal é o caso de Brejo dos Crioulos, em Minas Gerais, uma luta histórica e sofrida pela retomada do território pelos negros.
O potencial de conflitos desta expansão é explosivo e já está se dando, com pesadas perdas para comunidades humanas e toda a comunidade da vida (Ruben).
A memória bíblica é repleta de situações onde a desproporção de forças era gritante. Quantas vezes o que parecia impossível aconteceu? Basta fazer um simples mutirão da memória.
A mineração me traz à memória o sonho/projeto de Nabucodonosor que viu uma gigantesca estátua, esplendorosa, terrível: A cabeça daquela estátua era de ouro fino; o seu peito e os seus braços de prata; o seu ventre e as suas coxas de cobre; as pernas de ferro; os seus pés em parte de ferro e em parte de barro (Dn 2,32-33). Diversos impérios, um único projeto: estar de pé, visto e adorado por todos os povos. Apesar do sonho que termina com a estátua despedaçada, Nabucodonosor faz erguer uma estátua de ouro, alta 30 metros, o dobro da altura do templo de Salomão (Dn 3,1; 1Rs 6,2).
Ordena-se a vós, ó povos, nações e línguas: Quando ouvirdes o som da buzina, da flauta, da harpa, da sambuca, do saltério, da gaita de foles e de toda a espécie de música, prostrar-vos-eis e adorareis a estátua de ouro que o rei Nabucodonosor tem levantado. E quem não se prostrar e não a adorar, será na mesma hora lançado dentro da fornalha de fogo ardente (Dn 3,4-6).
É isso. O império não admite contestação, oposição. É, aparentemente, imutável, indiscutível, adorável. Como Deus!
4. A pedra que derruba a estátua
Nas experiências que foram apresentadas está presente uma constante importantíssima: a resistência aos projetos de concentração, devastação e violência por parte dos pequenos que se organizam e se tornam protagonistas.
Nesse contexto de desproporção de forças e de injustiça ambiental estrutural, algumas pessoas, famílias ou pequenas comunidades conseguem igualmente manter-se em pé, na tentativa de traçar caminhos singelos em direção obstinada e contrária (Pe. Dário).
“A APIB chama os povos e organizações indígenas e seus aliados a reforçarem a luta pela garantia dos seus direitos especialmente territoriais reconhecidos pela Constituição Federal e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, e que vergonhosamente ignora em prol dos interesses do capital e do modelo neodesenvolvimentista que escolheu para se firmar como hegemônico na comunidade internacional”. (Brasília – DF, 23 de outubro de 2012) (Egon).
Foi então que demos início a um processo de aglutinação de forças. Começamos a identificar os grupos (pastorais, movimentos, ONGs, universidades) interessadas no tema ou que já tivessem feito algum trabalho na região sobre o assunto. Em fevereiro de 2011, numa reunião na sede da ONG Cactus, em Santa Quitéria, estiveram presentes representantes da CPT, Cáritas Diocesana de Sobral, Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) e Núcleo Tramas (Trabalho, Meio Ambiente e Saúde para Sustentabilidade / Universidade Federal do Ceará). Com estas entidades foi criada a Articulação Antinuclear do Ceará (AAN/CE), existente até hoje (Thiago).
Sobre o tripé Missão / Espiritualidade / Metodologia, a CPT parte das situações concretas das pessoas/grupos/comunidades do meio rural e suas demandas mais urgentes e busca estabelecer com eles um caminho (“método”, em grego) de luta e superação, em que sejam eles os protagonistas e que, no horizonte histórico e transcendental, seja (busca da) realização da utopia do Reino de Deus (Ruben).
Como não lembrar?
Do monte foi cortada uma pedra, sem auxílio de mãos, e ela esmiuçou o ferro, o bronze, o barro, a prata e o ouro; o grande Deus fez saber ao rei o que há de ser depois disto (Dn 2,45).
A pedra de Daniel, a mão de Judite, o fogo de Elias, a baladeira de Davi, a vara de Moisés… Tudo para que fique claro que: Não deveis temer; estai quietos, e vede a libertação de Iahweh, que hoje vos fará; porque aos egípcios, que hoje vistes, nunca mais os tornareis a ver. Iahweh pelejará por vós, e vós vos calareis (Êx 14,13-14).
Estas memórias, repetidamente celebradas, em todas as festas do povo, animam, alimentam, fortalecem nosso coração, iluminam nossas mentes e fazem de nós o único povo de Deus a caminho da terra boa e espaçosa.
Nada de mágico, nada de milagroso a não ser a clareza que a vitória é do Senhor que conosco e em nós combate: O Senhor visitará Israel pela minha mão. Disso tenho certeza (Jd 8,33).
Este é o mistério insondável e inexplicável do Espírito Santo: o Deus que está em nós, misturado conosco e que nos envia para a missão a serviço da vida do todas as pessoas. Espiritualidade é deixar que o Espírito em nós e, através de nós, faça suas maravilhas:
Felizes os pobres no Espírito, porque deles é o Reino dos Céus (…)
Felizes os que são perseguidos por causa da justiça porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5,3.10).
5. Não nos deixes cair na tentação
A tentação está sempre à espreita. As gigantescas estátuas de ouro são terríveis e, ao mesmo tempo, sedutoras.
São os valores do poder aquisitivo, do status ligado à ostentação de um ou outro objeto simbólico que a mídia ou culturas diversas apontam como fetiche. O bem-estar não está sendo medido pela liberdade, a garantia de direitos e a afirmação das potencialidades criativas da comunidade e do indivíduo, mas sim pela imitação e assimilação do estilo de vida do consumo. As empresas que se instalam com grandes projetos extrativistas em nossa região, obviamente, sentem-se muito à vontade nesse contexto. Prometem lucro fácil e rápido e iludem as pessoas afirmando implícita ou explicitamente que a única alternativa é o modelo no qual elas mesmas se fundam (Pe. Dário). Apesar de não haver uma unanimidade dos povos indígenas contrários à mineração em suas terras… (Egon). Como acreditar em impactos que ainda não estão acontecendo, quando o discurso hegemônico era de que a mineração traria emprego, renda, desenvolvimento pra região? (…) A cada dia as empresas tentam convencer mais pessoas da viabilidade e inclusive de uma tal sustentabilidade do projeto (Thiago). Há mais de 20 anos os agentes da CPT já alertavam sobre a entrada de empresas, mas como sua comunidade não tinha conhecimento concreto sobre os impactos causados por uma mineradora e com a promessa enganosa da Galvani, de que todas as pessoas que vendessem suas terras seriam empregadas, muita gente vendeu sua área, até por 100 reais (testemunho citado por Ruben).
As experiências que foram apresentadas relatam várias a dificuldade para alimentar a resistência das comunidades diante da realidade dos impactos econômicos, ideológicos e políticos provocados pelas mineradoras e pelas autoridades a elas asservidas.
Há um evidente embate ideológico: populações e comunidades tradicionais são consideradas atraso e ineficiência. Agronegócio, mineradoras, madeireira, hidrelétricas, são sinônimos de progresso, desenvolvimento: 130 milhões de hectares para a vida de 200 mil índios são desperdiçados. 160 milhões de hectares (a maioria deles grilados) nas mãos de 28.000 latifundiário são considerados fonte de riqueza e crescimento.
Conceitos atávicos, como o da Pacha-mama, não resistem à lógica contundente gerada pelo mundo mercantilista greco-romano que proclama a separação definitiva entre a natureza inanimada e o homem que, animado, é superior e, por isso, dono da natureza que só adquire valor quando se torna mercadoria a serviço do seu dono. Esta cosmovisão influenciou, e muito, a própria interpretação dos textos bíblicos, impondo uma leitura antropocêntrica à ordem divina “enchei a terra e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra” (Gn 1,28).
É importante notar que capitalismo e socialismo têm em comum esta mesma visão mercantilista da natureza inanimada e, por isso, consideram inferiores e primitivas as culturas de origem índia e africana que celebram a mesma vida presente em tudo que existe: animismo, quando não, panteísmo!
Se nos impõe a releitura dos textos bíblicos, fora dos parâmetros da filosofia grega, para desmistificar a arrogância deste pensamento hegemônico e devastador!
Outro embate é o embate socioeconômico: nunca vi um Estudo de Impacto Ambiental – EIA concluir pela não implantação do projeto em análise. Todo EIA consegue provar a viabilidade econômica, a sustentabilidade ambiental e a equidade social de cada projeto. Um conjunto abalizado de estudiosos, muito bem pagos pela empresa, despeja na nossa frente milhares de páginas, gráficos, mapas, imagens que nossas comunidades não têm o tempo de estudar e que nos fazem sentir ignorantes e impotentes diante de tanta clareza a respeito da indiscutível importância e necessidade do projeto. Aliás, um ponto comum a todos os EIAs é: come ficaria a sociedade sem este projeto? E a resposta é sempre a mesma: ai de nós se não for implantado este projeto!
Nossa experiência, no Amapá, nos mostrou a importância de desmistificar os impactos sociais favoráveis que, no fim, enfiam o projeto goela abaixo das comunidades, pois compensariam os inevitáveis danos ambientais. È só ver o peso destes impactos “positivos” na tabela final de cálculos.
a. A folha de pagamento (nunca falar em empregos) e os impostos são parte de qualquer projeto que só produz lucro pelo uso da mão de obra. Para as empresas folha e impostos são contabilizados como passivos que devem ser descontados para calcular o lucro; porque a sociedade deve contabilizá-los como ativos?
b. Muitos impostos, em seguida, deixam de ser cobrados com a justificativa de facilitar a viabilidade e a competitividade do projeto.
c. As medidas compensatórias prometidas e parcialmente realizadas, acabam quase sempre sendo descontadas do imposto de renda devido, por serem consideradas de importância social: isto é, eles nos “compensam” com o nosso dinheiro.
d. É preciso por em discussão a repartição do lucro.
E, por fim, não podemos esquecer o embate político que está por trás da aprovação do projeto. Há todo um esforço, por parte das empresas e dos poderes locais, com o objetivo de cooptar as lideranças sociais e torná-las facilitadoras do projeto:
A INB já levou várias lideranças locais (prefeitos, vereadores, secretários municipais, diretores de sindicatos, dentre outros) para conhecer suas instalações em Caetité, omitindo, é óbvio, qualquer elemento que possa servir de contestação ao projeto (Thiago).
A tudo isso soma-se a fragilidade das CEBs nas dioceses e paróquias atingidas pelos projetos e que não hesitam em aceitar doações, considerando também a presença de movimentos de cunho pentecostal que pouco escrúpulos têm neste sentido.
As tentações são fortes e profundamente sedutoras.
Não nos deixes cair!
Sandro Gallazzi (22/11/2014) gallazzi46@gmail.com