Reunidos em Mariana, Minas Gerais, durante três dias, aproximadamente 40 pessoas puderam ainda ver o cenário deixado pela lama da ação criminosa da Samarco, suas consequências sobre as comunidades e debater a mineração e a ecoteologia nesse contexto de destruição da natureza e da vida das pessoas.
Cristiane Passos (CPT)
Para o biblista e assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Sandro Gallazzi, falar em ecoteologia é falar de Deus, é pensar Deus, é vivenciar e experimentar Deus a partir da casa. Oikos, de onde vem a palavra eco, significa casa. “Pode ser entendido como casa comum, a natureza, o universo, pode e deve ser entendida também essa casa como nossa sociedade, como vivemos em comunidade e também como nossa igreja. Dependendo do projeto de casa que a gente tem, vai nascer uma teologia diferente, se para nós a coisa normal é que tenha uma casa grande e uma senzala, nós falaremos de uma casa grande e de um Deus dos poderosos, por muito tempo foi vendida uma imagem de Deus dos poderosos. Nos nossos projetos de sociedade temos que ter um projeto de casa igualitária para falarmos de um Deus de maneira diferente. Por isso a casa é a coisa mais importante da teologia. Por fim, toda teologia fala de um projeto de casa. Que tipo de casa, que projeto, que casa queremos construir? O ‘meu povo’ é o povo que está sofrendo, fazer teologia a partir do grito do pobre é ecoteologia, mas tem que entrar também o meio ambiente, porque o grupo do poder se considera dono de tudo e o meio ambiente é o quintal da casa dos pobres. Para eles a natureza é inanimada, não tem serventia nenhuma, até que vire dinheiro. Eles não moram lá, quem mora lá é quem está sendo massacrado e expulso. Quem vai saber nos dizer quem é Deus são os pequeninos, as pequeninas, aqueles que não são nada na lógica no poder, mas são eles que sabem, eles que sabem fazer a ecoteologia”.
Da mesma forma, para Afonso Murad, do Grupo de Pesquisa em Ecoteologia, “teologia é pensar sobre Deus e a partir de Deus. Ecologia é pensar sobre Deus a partir da casa, e essa casa é a casa comum. Ecoteologia ela pensa e reflete sobre o que cremos, em que cremos e para quê cremos, ou seja, a fé, nessa relação com a casa comum. A ecotelogia é esse saber sobre a realidade à luz de Deus, naquilo que nos conduz enquanto comunidade, que nos conduz não só no pensar, mas no agir também. Ela bebe na teologia da libertação, ouve o clamor dos pobres. E tem os pobres como protagonistas da sua libertação. Ela consegue ver a realidade humana naquilo que ela chama de graça. A indignação diante da injustiça, e também o encantamento diante da beleza. Essa nova sociedade que a gente luta por ela, precisa ser vivida agora também, que é o bem viver. É uma antecipação da sociedade que a gente quer para todo o mundo. Ela aprende com outras visões e com outras teologias, ela aprende com o ecofeminismo, entre outros”.
Ruben Siqueira, da coordenação nacional da CPT, questiona, com isso, qual é o lugar dessa ecoteologia? Para ele, “é o lugar dos atingidos e atingidas, dos massacrados e massacradas pelas ‘Vales’ da vida. A partir da lama estéril que a mineradora cria, a teologia que se faz a partir disso, por isso ela é antissistêmica. Outro ponto é que se trata de uma ecoteologia feminista, pelo feminismo teológico, colocamos a casa como foco e não o templo. Confronta o patriarcado e o hierarcado. É uma teologia do reencantamento com Deus. É uma teologia biocêntrica, se contrapondo a uma teologia teocêntrica. O bem viver como meta, como modo, anti-consumista. E questiono ainda, se os territórios são dos povos, porque o subsolo não é?”.
A ecoteologia e a cosmologia dos povos originários
Para Davi Kopenawa, xamã yanomami, essa foi uma oportunidade importante de estar junto com a Igreja e refletir sobre ecoteologia. “E também de falar para que vocês entendam, pois homem da cidade não entende e não conhece sobre a gente e sobre a nossa terra. A minha sabedoria eu aprendi desde pequeno, com a minha mãe, a minha mãe terra, e com o meu pai, o meu pai floresta. A floresta bonita, rica de saúde e de alimentação para nós. A teoria do Deus, Oman, eles trabalhavam juntos, plantou a terra, o sol para iluminar, não precisa usar gasolina, petróleo, Deus não precisou usar gasolina para fazer a luz, e não acaba nunca. A água do rio, fundamental para a floresta. Tudo que foi feito é fundamental. O homem branco chegou e fez chiqueirinhos para os índios viverem, como em zoológicos, e acha que isso basta. Não entendem. Veem o meio ambiente, meio, como metade. Para nós não é metade. A natureza é o todo”.
Para o padre Corrado Dalmonego, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e da Missão Catrimani-Consolata, junto aos Yanomamis, em Roraima, da convivência com os povos indígenas, um importante ponto de reflexão levantado quando questionados pela realidade é que “o mundo pertence às gerações futuras, a natureza não pode ser pensada como algo separado de nós. Temos que enxergar as riquezas culturais dos povos. As realidades às quais nos referimos são também os povos e as comunidades nas quais encontramos estímulos, luzes, riquezas, força, além de conflitos. Podemos pensar a missão, o espaço de teologia como encontro e aprendizado. No nosso caso, conseguimos conceber nossa missão, principalmente, como diálogo e profecia”.
Djukuman Krenak destacou a luta de seu povo às margens do rio “que não é mais doce”. Segundo ela, “tantos clamores não escutados resultaram no grande desastre ocorrido dois anos atrás, que matou toda uma bacia hídrica, a história e a cultura de um povo. Toda a educação, a coletividade do povo Krenak acontecia no Rio Doce, às margens do rio, toda a religião é feita as margens do rio. A vida religiosa Krenak depende do rio (WATU). Ela está interrompida, pois não existe mais o Rio Doce. A Vale quer acabar com a essência das pessoas, ela coloca sementes negativas que dividem o povo para enfraquecer a luta, matando sua essência. Mesmo com todos esses problemas, o povo continua lutando e empoderando-se. O povo é dono do Estado de Minas, e não uma empresa”.
A indígena insistiu na necessidade da união das lutas, pois não é possível que um povo lute sozinho. “Está na hora de mostrar que a mineração não é mais possível. Se existisse mineração tradicional o povo indígena o faria, a mineração é atividade que fere o coração da terra, não existe mineração tradicional. Minerar é machucar a terra”.
“Não me venham com essa matemática, a nossa alma está suja de lama”
Marino, atingido pela lama da Samarco, sobrevivente do crime da mineradora ocorrido há dois anos, em 5 de novembro de 2015, vivia em Paracatu de Baixo (MG) onde era produtor de leite. “Nas reuniões, nas audiências, vinham falar bonito, mostravam números, planilhas… para quem perdeu tudo? Foi quando eu disse, ‘não me venham com essa matemática, a nossa alma está suja de lama”. Marino relatou com tristeza que além devastar Paracatu de Baixo, a lama afastou a comunidade e dividiu as famílias.
Para Davi Kopenawa, “Xapuri ficou com raiva ao ver a devastação da Terra [decorrente da mineração]. O desastre que ocorreu deve ser tomado como uma advertência de sua revolta. Ele [Xapuri] quer nos ensinar. Omama (o nosso criador) falou para mim – seu filho – a respeito do coração da terra, que foi ferido, foi cortado pelas máquinas que rasgaram o solo. A consequência desta devastação, serão queimadas e outros desastres que virão, Omama nos dá suas sábias palavras. Omama falou e antigamente já sua imagem se mostrou com o objetivo de aberturas e ensinarmos a viver bem, criar nossos filhos, cuidar deles, plantar roças e coletar os frutos da floresta”.
Djukuman Krenak lamentou a morte do rio Doce, “pois o rio não é apenas água que corre, é um ser vivo, que não está sendo respeitado. A natureza irá se regenerar, os espíritos indígenas irão subir e virar encantados, os espíritos das pessoas das comunidades atingidas também, mas os daqueles que cometeram esse crime, que envenenaram o rio, vão apodrecer aqui, vão ficar podres junto com a poeira dessa lama maldita, para eles não há esperança”.
Debate e exposição fotográfica encerram programação do Encontro
Uma roda de conversa sobre a realidade de povos atingidos pela mineração, em especial dos atingidos pela lama da Samarco, encerrou o encontro “Ecoteologia e atividade minerária: a espiritualidade, a resistência e as alternativas em defesa dos territórios”. Atingidos de Bento Rodrigues (MG), representantes dos povos Krenak e Yanomami, quilombolas, o bispo de Viana (MA), dom Sebastião Lima Duarte, o coordenador arquidiocesano de pastoral, padre Geraldo Martins, e lideranças locais participaram da atividade.
Para Moema Miranda, da organização do encontro e do Serviço Inter-Franciscano de Justiça, Paz e Ecologia (Sinfrajupe), este foi um momento muito importante. “Nós viemos fazer o encontro de comunidades atingidas pela mineração, que lutam também com a força da Igreja. Então, o seminário Igreja e mineração tenta fazer essa aproximação dessa luta do povo, discutindo um pouco essas espiritualidades em disputa neste momento. E para nós estar aqui com o povo de Mariana, com o povo de Bento Rodrigues, com o povo atingido diretamente, é parte do que nos inspira, nos motiva que maior do que a dor, maior do que a injustiça é a solidariedade e a força do povo unido”.
Na ocasião, o projeto “Lama que Mata”, idealizado pelo repórter fotográfico Joka Madruga e pelo videomaker e agente da CPT Bahia, Thomas Bauer, foi apresentado mais uma vez na cidade de Mariana, com a projeção de depoimentos de atingidos pela lama da Samarco, e com a exposição das fotografias de Joka Madruga, tudo produzido ao longo dos rios Doce, Carmo e Gualaxo do Norte.
O informe do Encontro (Em Portugués): Seminario ECOTEOLOGIA e MINERAÇÃO
O Informe do Encontro en Español: Seminario Mariana en ESPAÑOL
O Informe do Encontro em inglês: Seminario Mariana en INGLES