Até pouco tempo atrás, o compromisso ambiental era considerado, na Igreja, acessório, secundário. Um eventual ganho adicional dentro de outras prioridades.
Também na sociedade civil era assim. Por quanto se diga que os direitos humanos são indivisíveis e interdependentes, eles ainda são pensados e defendidos em categorias progressivas, como se alguns fossem mais urgentes que outros.
Acompanhando as lutas e reivindicações das comunidades, na Amazônia oriental brasileira, ainda hoje percebemos que o Estado e as empresas responsáveis pelos grandes projetos do extrativismo predatório nos obrigam a escolher entre o direito ao meio ambiente sadio e aquele ao trabalho, por exemplo, como se fossem separáveis e não fôssemos dignos de ambos, de todos.
Na Igreja, frequentemente, existe a mesma hierarquia de pastorais. As mais importantes parecem ser aquelas ad intra (liturgia e catequese, por exemplo); possivelmente, se valoriza algum compromisso ad extra (a solidariedade cristã e as pastorais sociais, melhor se limitadas ao socorro emergencial que dedicadas à transformação social). Finalmente, se sobrar tempo e pessoas, se pensa em algum compromisso ambiental, como pastoral “de última geração”.
A encíclica Laudato Si’ (LS) veio como uma real “revolução cultural”, nesse modo de construir o compromisso em defesa da Casa Comum. Não é um documento que acrescenta mais uma dimensão na missão da Igreja, mas que a repensa radicalmente, e nos desafia a uma reinterpretação copernicana dos princípios da Doutrina Social da Igreja.
Tem como centro unificador a Ecologia Integral e como desafio permanente (que ainda requer uma grande conversão na cultura e espiritualidade cristã) a passagem da dominação para o cuidado recíproco, desmontando o paradigma antropocêntrico.
Em América Latina, esse modelo de dominação está ainda hoje muito vinculado à cultura colonial, que atravessa e influencia o poliedro da Ecologia Integral, em suas dimensões ambiental, social, cultural, espiritual, econômica, política, de estilos de vida cotidiana…
O Documento Final do Sínodo da Amazônia lembra exatamente isso: “é importante termos consciência da força do neocolonialismo que está presente em nossas decisões cotidianas” (DF 81).
Por outro lado, em nosso continente, esta encíclica é uma semente que está fincando raízes e gerando intuições e compromissos novos. Os frutos são muitos, em nível de conversão da fé e das práticas na Igreja, bem como na vida da sociedade.
Nas poucas linhas a seguir, quero acenar, em particular, a alguns processos e iniciativas que estruturalmente poderão garantir uma continua e progressiva “encarnação” da LS na Abya Yala[1].
O primeiro “filho da Laudato Si’”, como diz o próprio Papa Francisco, é o Sínodo da Amazônia, que ainda continua valorizando a escuta, o diálogo e a participação das comunidades.
Uma vez que compreendemos a Ecologia Integral como um poliedro, que necessita de uma missão plural e inculturada, o Sínodo nos provoca a identificar e instituir ministérios que qualifiquem a criatividade dos cristãos leigos e leigas, com um particular destaque para o protagonismo das mulheres na Igreja.
A Rede Eclesial Panamazônica, REPAM, nasceu pouco antes da LS, inspirou-se profundamente a partir dela e renovou em força do Sínodo o compromisso de se colocar a serviço dos povos da Amazônia, acreditando em seu protagonismo. Junto com a defesa dos direitos humanos, vem promovendo passo a passo também os direitos da natureza, como indica o Documento Final do Sínodo (n. 74 e 84).
A Amazônia não é só um contexto paradigmático de defesa da vida, mas um dos centros vitais a ser protegido com urgência e radicalidade, porque garante o equilíbrio climático do inteiro Planeta.
Ciente desse desafio, a REPAM abriu-se também à articulação de organizações e instituições em nível internacional, sendo uma das protagonistas da criação da Assembleia Mundial pela Amazônia, plataforma que reúne grupos étnicos, religiosos, militantes, pesquisadores, artistas e políticos, em defesa desse bioma.
Também a rede ecumênica latino-americana Igrejas e Mineração, nascida em 2013, relançou seu compromisso a partir da encíclica e, em seguida, do documento do CELAM “Discípulos missionários, custódios da Casa Comum” (2018). Igrejas e Mineração assume a LS como chave de leitura de seu compromisso em defesa da vida, dos territórios e das comunidades, por transições rumo a economias pós-extrativistas.
Busca nas espiritualidades dos povos em resistência à agressão do extrativismo predatório uma fonte de inspiração e fortalecimento das comunidades. Atua em ações de incidência frente aos organismos nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos e propõe uma campanha de desinvestimento da mineração. Como lembrou Papa Francisco na Rede Mundial de Oração, no mês de maio 2021, “Para evitar que os pobres voltem a pagar as consequências, a especulação financeira deve ser estritamente regulamentada. Que as finanças sejam instrumentos de serviço, instrumentos para servir as pessoas e cuidar da casa comum!”.
A Conferência Latino-Americana de Religiosos constituiu o Grupo de Trabalho Ecologia Integral da CLAR, que se empenha na formação das comunidades religiosas, na concretização do Plano de Ação Laudato Si’ para a vida consagrada e também na proposta do desinvestimento da mineração no âmbito das congregações católicas.
Da mesma forma, no Brasil, nasceu em 2019 a Comissão Episcopal para Ecologia Integral e Mineração, organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Nestes dois anos, a Comissão empenhou-se propondo percursos de formação sobre a LS, bem como notas públicas, cartas abertas e comunicações oficiais aos representantes do poder executivo, legislativo e judiciário sobre os impactos da mineração, particularmente da multinacional brasileira Vale S.A.
Realizou também atividades de incidência internacional, participando da 43ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos da ONU em Genebra e encontrando-se no Vaticano com o Papa Francisco e o Card. Turkson, do Dicastério para Desenvolvimento Humano Integral.
Recentemente, a Comissão participou da iniciativa de um grupo internacional de investidores católicos que enviou uma carta ao Governo Brasileiro ameaçando desinvestimento em caso de descuido dos povos indígenas e da Amazônia.
Considerando estas e muitas outras iniciativas das igrejas locais em América Latina, podemos afirmar que a encíclica Laudato Si’ ofereceu um respiro novo e mais profundo à evangelização em nosso continente, permitindo tornar presente o Reino de Deus a partir do cuidado da Casa Comum e da fraternidade e sororidade universais.
Muitas comunidades e redes assumiram LS como projeto de vida e trabalho. A criatividade do Espírito ao encarnar a encíclica em processos eclesiais e socioambientais inesperados foi amplificada graças ao kairós do Sínodo da Amazônia, que demonstrou que “a voz de Cristo fala através do inteiro povo de Deus”, escutando o qual, podemos “respirar nele a vontade a que Deus nos chama” (Episcopalis Communio, n. 5 e 6).
Olhando para dentro, em atitude de conversão continua de nossa Igreja, permanecem abertos muitos desafios: da ministerialidade, do protagonismo da mulher, de uma revisão radical do paradigma antropocêntrico, dominador e autorreferencial.
“Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança” (LS 244).
Pe. Dário Bossi, Rede Igrejas e Mineração
[1] Abya Yala na língua do povo Kuna significa “Terra madura”, “Terra Viva” ou “Terra em florescimento” e é sinônimo de América. É autodesignação dos povos originários do continente como contraponto à expressão colonial América, em contraponto aos conquistadores europeus.