Chegamos ao quarto aniversário do rompimento da barragem com provas bastantes consistentes sobre os homicídios dolosos e crimes ambientais cometidos, porém sem que alguém esteja respondendo criminalmente por esses delitos.

A ação penal que tramitava desde fevereiro de 2020 contra 16 pessoas físicas – 11 funcionários da Vale S.A. e 05 da TÜV SÜD – e as 02 empresas foi invalidada pelo Superior Tribunal de Justiça em outubro de 2021, por considerar que o processo estava em uma jurisdição incorreta. Essa decisão foi confirmada em dezembro passado pela 2a. Turma do Supremo Tribunal Federal, cujos componentes, em sua maioria, contrariaram o voto do Ministro Relator Edson Fachin, os posicionamentos do MPMG e do MPF e também as manifestações da AVABRUM e RENSER. A magistrada Rosa Weber, presidente do STF, determinou o cumprimento imediato dessa decisão, com a remessa do processo para a Justiça Federal em Belo Horizonte.

As provas colhidas na investigação permanecem válidas. Cabe agora ao MPF apresentar uma nova acusação. É importante que os Procuradores da República aproveitem a oportunidade para incluir todas as 19 pessoas físicas que a Polícia Federal apontou como culpadas e todos os crimes que a investigação considerou cometidos: os crimes de homicídio doloso duplamente qualificado, os crimes ambientais e os de falsidade ideológica e de uso de documentos falsos referentes à declaração de estabilidade da barragem. É imprescindível também que a Justiça Federal (TRF da 6a. Região) trate o caso com prioridade e destine os recursos humanos e financeiros necessários para que o processo tramite sem mais percalços, com atenção redobrada às manobras que podem vir a ser tomadas para atrasar o ainda mais o andamento do processo.

Sem justiça criminal não há reparação

Reparação é uma palavra com muitos sentidos e que envolve várias dimensões. Não se resolve com uma decisão judicial nem pode se dar somente no âmbito individual. Pelo conceito de reparação integral, adotado pela jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a reparação deve ir muito além da indenização em dinheiro. Precisa incluir as dimensões da verdade, memória, justiça e garantias de não repetição. Não por acaso, os familiares das vítimas de Brumadinho costumam repetir: “sem justiça, não há reparação”.

É por essa razão que o acordo bilionário firmado entre o Estado de Minas Gerais, as instituições de justiça e a mineradora Vale é insuficiente e em certa medida é também perverso. Organizações como o Instituto Cordilheira têm denunciado o que muitos têm chamado de “indústria de reparação”, que é um conjunto de negócios em que muitos atores externos enriquecem enquanto que a população local segue sofrendo prejuízos dia após dia.

 

Garantias de não repetição

A reparação deve passar não só pela condenação dos criminosos, mas também pela adoção de novas leis e políticas de controle rígido para evitar que os fatos se repitam. Em fevereiro de 2019 entrou em vigor em MG a Lei Estadual nº 23291 (“Lei Mar de Lama Nunca Mais”). Porém, as mineradoras, em grande parte dos casos, descumpriram o prazo de 03 anos para descaracterizar as barragens com alteamento “a montante”, que são as mais perigosas. Das 54 barragens que deveriam ser descaracterizadas, ou seja, desmontadas e reincorporadas à paisagem, apenas cinco o foram. As empresas receberam uma espécie de perdão do governo de MG, do MPMG e do MPF, que lhes impuseram multas em dinheiro mas ampliaram a sensação de impunidade.

 

De acordo com os boletins da Agência Nacional de Mineração (ANM), fechamos o ano de 2022 com 84 barragens de rejeito em nível de alerta ou emergência, sendo 52 só em MG. E o que é mais preocupante: esse número vem aumentando ao longo do tempo. A Vale S.A. tem declarado que está descaracterizando progressivamente as suas barragens a montante. Famílias que foram retiradas abruptamente de suas casas seguem aguardando há mais de três anos uma definição sobre o seu futuro. Moradores do entorno das minas do Córrego do Feijão e da Jangada desconhecem os planos da mineradora quanto ao seu fechamento defintivo ou a eventual retomada do projeto de ampliação da extração de minério. O contexto é de muita desconfiança, falta de informação e aflição.

 

O papel das pessoas defensoras

Não podemos deixar de realçar a importância das lideranças comunitárias, pessoas defensoras de direitos humanos e ambientalistas que atuam na região. São pessoas que muito antes do rompimento da barragem já vinham denunciando os problemas das operações de mineração em Brumadinho e região ou que passaram a exercer esse papel logo depois da tragédia e hoje protagonizam a luta por reparação integral, justiça, memória, verdade e garantias de não repetição. Essas pessoas são essenciais, porque dizem e fazem aquilo que muitos gostariam de dizer ou fazer. Elas devem ser protegidas e não podem ser perseguidas nem estigmatizadas ou taxadas de inimigas do progresso.

Sem anistia

No tempo em que vai se avolumando na sociedade o coro “Sem Anistia!”, em refência aos graves crimes vivenciados no último período da história do Brasil, é fundamental que se estabeleça a tolerância zero para a impunidade dos setores dominantes da sociedade brasileira e de seus sócios estrangeiros, cujos crimes reiterados têm tirado cruelmente a vida de muitas pessoas e impedido a realização da sociedade justa, fraterna e igualitária que a redemocratização prometeu.

 

Do extermínio dos povos indígenas, passando pela escravidão, pela tortura e desaparecimento forçado da nossa última ditadura, pelos massacres das polícias e grupos de extermínio e os recorrentes crimes de ecocídio da mineração, a história do Brasil é marcada pela impunidade. Precisamos superar essa marca de uma vez por todas. Crimes como os ocorridos em Brumadinho não podem se repetir e a responsabilização criminal de todos os atores envolvidos é um passo fundamental para isso. Só a punição dos culpados poderá evitar a repetição desses crimes no futuro e amenizar o sofrimento das pessoas que seguem traumatizadas pela perda de seus familiares e pela mudança abrupta de seus projetos de vida.

 

Danilo Chammas é advogado e coordenador do Observatório das Ações Penais sobre a Tragédia em Brumadinho, uma iniciativa da RENSER em parceria com a AVABRUM. Carolina de Moura é jornalista e coordenadora de gênero do Instituto Cordilheira.

 

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A responsabilização criminal deve acontecer também na Alemanha

O processo criminal contra a subsidiária da TÜV SÜD no Brasil e alguns de seus funcionários não elimina a necessidade de responsabilização criminal também daqueles que cometeram os crimes desde o país sede dessa companhia transnacional. As investigações feitas no Brasil comprovaram a contribuição de pessoas da Alemanha para que a tragédia ocorresse. Foi por isso que, em 15 de outubro de 2019, cinco cidadãs brasileiras familiares das vítimas, juntamente com as organizações alemãs Misereor e o Centro Europeu para os Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR, por sua sigla em inglês), apresentaram, na Alemanha, uma queixa penal contra a matriz da empresa certificadora TÜV SÜD e um dos seus funcionários. Atualmente, o Ministério Público de Munique segue conduzindo suas investigações a fim de esclarecer as potenciais responsabilidades criminais de atores alemães pelos crimes relacionados ao rompimento da barragem.