Representantes de comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e organizações socioambientais brasileiras intensificaram suas denúncias contra o megaprojeto logístico Grão-Pará Maranhão (GPM), que ameaça territórios, biodiversidade e direitos humanos por mais de 500 quilômetros no Maranhão. Além de encontros locais no Maranhão, membros de organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Justiça nos Trilhos (JnT) e a Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) levaram as denúncias à Europa, realizando agendas em Bruxelas, Genebra e Paris para alertar sobre os impactos devastadores do projeto. As agendas ocorreram de 18 a 28 de novembro, com espaços no Fórum de Empresas e Direitos Humanos das Nações Unidas, além de reuniões com eurodeputados e organizações europeias, com articulação de Salve a Floresta (Rettet den Regenwald e.V.), Entraide & Fraternite e CCFD – Terre Solidaire. 

O projeto GPM, com primeiros movimentos em 2017 com requerimento de autorização para construção,  prevê a construção de um porto de águas profundas na Ilha do Cajual, no município de Alcântara, ocupando aproximadamente 87% do território quilombola local, que totaliza 1.630 hectares. Além disso, está planejada a Ferrovia EF-317, com 520 km de extensão, conectando o porto às ferrovias Estrada de Ferro Carajás e Ferrovia Norte-Sul. O projeto visa movimentar cargas como minério de ferro, soja, trigo, milho e outros produtos para exportação. 

Mikael Carvalho, coordenador da Justiça nos Trilhos, destacou: «Após análise da documentação que conseguimos acessar, chegamos à conclusão de que o projeto GPM é inviável do ponto de vista ambiental e social. Muitas comunidades com as quais trabalhamos seriam severamente impactadas, mas descobrimos também que a maioria nunca ouviu falar do projeto.» A região oeste do Maranhão, onde a ferrovia e o porto seriam instalados, é parte da Amazônia e abrange as Reentrâncias Maranhenses, uma área de proteção ambiental reconhecida internacionalmente pela Convenção de Ramsar. É o lar do maior manguezal intacto do mundo e de espécies ameaçadas como o íbis escarlate. «Além de impactar os seres humanos, o projeto destroi toda a fauna e flora da região», alertou Mikael.

Resistência das Comunidades Locais

Durante um encontro em São Luís, representantes das comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais discutiram estratégias de enfrentamento ao projeto. Em 2017, a GPM tentou negociar diretamente com comunidades quilombolas, prometendo moradias e participação nos lucros. No entanto, Hilton Araújo de Melo, procurador do Ministério Público Federal, afirmou que tais acordos não têm validade jurídica sem um processo de consulta livre, prévia e informada, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Kumtum Akroá Gamella, liderança indígena, ressaltou que o discurso de «desenvolvimento» esconde uma lógica de violência e exploração: «Dizem que é para o desenvolvimento, mas o que vemos é um processo de ‘des-envolvimento’, que arranca nossas relações com a terra, as águas e a floresta. Quando falamos dessas violências, falamos da nossa vida.»

Gilberto Lima, da coordenação do CPP, também destacou o impacto sobre comunidades pesqueiras e o meio ambiente: «O Maranhão, com seu litoral profundo, tem sido transformado em zona de sacrifício para portos e indústrias que poluem os rios e manguezais, acabando com a pesca artesanal e a biodiversidade.»

Denúncias Levadas à Europa

Na Europa, as organizações reforçaram a denúncia contra a possível participação do governo alemão, por meio da Deutsche Bahn (DB), no financiamento do GPM através do programa Global Gateway. «Estamos aqui para pedir que governos e empresas europeias não financiem projetos de destruição», enfatizou Mikael. A delegação destacou que o Brasil está entre os países com maior número de defensores de territórios assassinados, refletindo a violência estrutural associada a esses empreendimentos.

O programa Global Gateway, lançado pela União Europeia em 2023, foi concebido para posicionar a UE como um ator principal no desenvolvimento econômico de seus países parceiros. A Comissão Europeia e a Alta Representante da UE definiram o «GG» como uma nova estratégia europeia destinada a desenvolver e reforçar conexões inteligentes, limpas e seguras nos âmbitos da tecnologia digital, energia, transporte, educação e pesquisa. Contudo, Fernanda Souto, da assessoria jurídica da JnT, questiona o modelo de transição energética adotado pelo Brasil e a relação direta com financiamentos europeus nos projetos: «É urgente uma transição energética, mas não às custas de expulsar comunidades e destruir territórios. Não existe floresta sem pessoas. Quem deixa a floresta em pé são os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.»

Em consonância com o exposto pela advogada, Gilberto Lima denunciou a perspectiva colonial de um projeto de transição energética que cria novas zonas de sacrifício e é impulsionado, em grande medida, pelo Norte Global:

«Uma das ameaças enfrentadas por muitas comunidades pesqueiras decorre desse modelo de transição energética imposto. Reconhecemos a urgência de uma transição, mas o modelo implementado no Brasil é marcado pela exploração, violência e expulsão de diversas comunidades. Muitos parques eólicos, especialmente no Maranhão e na Bahia, são instalados de forma que destroem a fauna, causam doenças, alteram habitats e impactam diretamente a vida de tartarugas e peixes. Além disso, esses projetos limitam o direito de ir e vir das comunidades pesqueiras. Em algumas regiões, a água do mar começa a invadir as comunidades devido à salinização provocada por essas intervenções.»

Segundo o relatório Quem se beneficia do Global Gateway?, da Rede Europeia sobre Dívida e Desenvolvimento (Eurodad), o marco político do GG tem sido cada vez mais utilizado para reorientar o orçamento de desenvolvimento da UE, direcionando-o explicitamente para o apoio a projetos lucrativos para empresas europeias e para os interesses geopolíticos da União, em vez de atender aos objetivos de desenvolvimento fundamentais estabelecidos em tratados e políticas, como a erradicação da pobreza e o fim das desigualdades. “O GG promove a privatização de infraestruturas e serviços públicos no setor energético nos países do Sul e corre o risco de aumentar o fardo da dívida dos países parceiros», afirma o relatório. 

Para Guilherme Cavalli, coordenador da Campanha de Desinvestimento em Mineração, os financiamentos público-privados captados pelo programa Global Gateway poderão alargar as injustiças socioambientais no Sul Global. “Ao focar em áreas que violam diretamente os territórios, como em áreas logísticas, energia e mineração, a iniciativa da União Europeia seguirá impondo uma lógica extrativista primário exportadora aos países, com a finalidade de suprir a cadeia de matéria prima europeia», comenta o integrante da Rede Igrejas e Mineração. “Além do mais, não se trata de investimentos com princípios democráticos e transparentes, como se percebe na falta de informação e consulta no possível envolvimento ao projeto Grão Pará Maranhão». 

Demandas e Mobilização

As comunidades exigem o cancelamento do projeto GPM e a garantia de seus direitos territoriais, além de uma transição energética justa e inclusiva. Também apelam pela aceleração da demarcação de terras indígenas e quilombolas, historicamente atrasada. «A luta por nossos territórios é a luta por nossas vidas e pela preservação de toda a biodiversidade. Não viemos até aqui para passear, viemos para exigir justiça», concluiu Kuntum. 

Entre as demandas apresentadas, as agendas reforçaram a necessidade de consultas diretas e prévias com as populações e comunidades potencialmente afetadas por projetos de desenvolvimento. Essa exigência está alinhada com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece o direito de povos indígenas e tribais à consulta prévia, livre e informada sobre medidas que os afetem diretamente.

Em relação ao financiamento direto da União Europeia, as lideranças demandaram, em reuniões realizadas com eurodeputados e senadores em Genebra e Paris, que o programa Global Gateway não esteja vinculado a empreendimentos que promovam violações de direitos humanos e ambientais ou que sejam implementados sem consultas legítimas e abrangentes. “Já temos uma experiência negativa com uma ferrovia, e agora surge a possibilidade de um novo projeto. Viemos justamente para denunciar esse projeto, que causa a expulsão de povos ancestrais de seus territórios e prejudicará áreas que estão em processo de titulação, impactando diretamente a demarcação de territórios indígenas e quilombolas”, destacou Carvalho.

As lideranças enfatizaram que o respeito aos mecanismos de consulta, como previsto na Convenção 169 da OIT, é crucial para garantir que projetos de infraestrutura e desenvolvimento sejam implementados de forma justa, respeitando os direitos culturais, sociais e ambientais das comunidades envolvidas, além de embasar o direito de dizer não aos projetos que impactam os territórios tradicionais. 

A mobilização nacional e internacional continua, com as comunidades reafirmando sua posição contra um modelo de desenvolvimento que privilegia lucros estrangeiros às custas da vida e do meio ambiente no Brasil. Em maio, uma primeira delegação esteve em Berlim para diálogos com o governo Alemão sobre o envolvimento da estatal do país no projeto. Na ocasião, o grupo buscou diálogo com a própria DB, que não respondeu a solicitação de reunião. Uma carta assinada pelas organizações maranhenses e que alertava sobre os possíveis riscos do projeto e a negativa das comunidades foi entregue na sede da empresa. 

Veja o vídeo – Territórios não são negociáveis: Alemanha tem que rever a parceria com o projeto Grão-Pará Maranhão:

A Articulação Anti-GPM é composta pela organizações e movimentos como Justiça nos Trilhos, CPT, CIMI, CPP, MABE, MOMTRA, MOQBEQ, MOQUIBOM, MAM, MST, CONFREM MA, UNICQUITA, Centro de formação Saberes Ka’apor, Fórum Carajás, Justiça Global, Fundação Rosa Luxemburgo, Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale e Salve a Floresta.