É possível que nenhum documento pontifício tenha, como a Encíclica Laudato Si, sido aguardado com tanta expectativa por pessoas que em todo o mundo – e talvez especialmente aqui na América Latina – atuam na defesa do que, desde então, chamamos nossa Casa Comum. A Encíclica, lançada em 2015, foi acolhida com imensa força, não apenas por nós, cristãos, católicos. O Papa Francisco conseguiu, como se propunha, abrir um intenso diálogo com a comunidade ecumênica, científica, com filósofos tanto quanto com lideranças indígenas, ambientalistas, comunidades afetadas pela mineração, populações tradicionais. Consolidou lugar significativo para a Igreja Católica no debate sobre os compromissos internacionais em relação aos temas do aquecimento global, do enfrentamento às desigualdades, evidenciando a conexão entre ambos. “Não existem duas crises separadas (…), mas uma única e complexa crise socioambiental” (§139), afirmou. No contexto da COP 21, que aconteceria naquele mesmo ano em Paris, a Encíclica teve incidência no que foi celebrado como o mais importante acordo internacional relativo ao clima. Aquele ainda não era um mundo pandêmico e, por alguns meses, foi possível celebrar o Acordo de Paris. A Encíclica começava seu caminho!

Na América Latina, desde o final dos anos 80, seguindo os aprendizados das comunidades eclesiais de base e das pastorais sociais, parte de nossa Igreja comungou de uma consciência ambiental mais profunda. Teólogas ecofeministas e teólogos da libertação ajudaram a dar forma a uma leitura de mundo complexa e sistêmica que reintegrava o compromisso com justiça social, com a busca de respeito e sintonia com os ritmos da vida, dos ecossistemas, do planeta. Na Encíclica Laudato Si, o Papa Francisco, seguindo a inspiração de São Francisco, recolheu com carinho os melhores frutos deste percurso e, em um diálogo ecumênico, combinando ciência e sensibilidade, propôs uma nova forma de ser e estar nesta bela Casa Comum, o planeta Terra. A Encíclica assim, fortaleceu, ampliou e valorizou a palavra das comunidades, tanto quanto de conferências episcopais, cientistas e místicos de todo o mundo. Teceu com ternura e força um guia para nos orientar nestes tempos de Antropoceno, tempos tão desafiantes e que exigem como afirma o Papa, uma “corajosa revolução cultural” (§114). Uma “conversão integral”.

No entanto, os mecanismos que estavam na raiz do intenso “clamor da Terra e dos pobres” (§49), de onde parte a Encíclica, não convertidos.  Lamentavelmente, ,  nestes últimos anos foram intensificados. A pandemia do Covid 19, resultado dos processos de devastação ambiental, globalização e perda de biodiversidade, expôs com toda a dureza as dinâmicas a que se refere o Papa Francisco, ao identificar a “raiz humana da crise ecológica”. A contínua aceleração das taxas de concentração atmosférica de CO2, fez com que em março de 2021, pela primeira vez, atingíssemos o marco de 417 partes por milhão (PPM); mais de 37 mil espécies animais estão ameaçadas de extinção e os níveis de desmatamento e queimadas superaram em 2019/2020 todos os recordes anteriores. Com os preços dos metais em alta, as mineradoras avançam sobre os territórios protegidos, de indígenas, camponeses e quilombolas, ameaçando suas comunidades e ampliando as zonas de sacrifício, nesta Casa tão violada pela ganância dos grandes empreendimentos.

Muitas vezes, na Rede Igrejas e Mineração nos perguntamos de onde nossas comunidades tiram força para seguir resistindo, em um cenário tão violento e sombrio? Como conseguem seguir lutando? Qual a fonte de energia para seguir defendendo seus territórios e, com isto, toda nossa Casa Comum? Quanto mais nos aproximamos do que temos chamado o coração da resistência, mais encontramos a presença profunda e inabalável de espiritualidades que permitem viver em comunhão com a terra e com a Terra. Ecoespiritualidades, é o que encontramos neste coracionar! Pessoas que, diferente de muitos outros, não “esqueceram que são terra” (§2), como nos diz o Papa. Se, como ele afirma, “não haverá uma nova relação com a natureza, sem um novo ser humano. Não há ecologia sem uma adequada antropologia” (§118), vamos descobrindo que este “novo” está em meio aos povos tradicionais, aos indígenas, aos camponeses. Aos jovens que protestam nas ruas das grandes cidades, em defesa do futuro! Está entre os que amam e respeitam seus ancestrais, suas memórias, suas moradas. Os que sabem que eles não se vão. Que estão aqui, para nos guiar e proteger. Na força frágil destas comunidades, ameaçadas dia a dia pela ganância insaciável dos grandes gigantes conglomerados, ecoa a música forte da Encíclica Laudado Sí! Para elas, o Papa, como disseram lideranças indígenas durante o Sínodo para a Amazônia, é o querido “Francisco, irmão”! A Laudato Sí fez ressoar no coração da Igreja, a espiritualidade mais profunda do coração da resistência! Pulsam seguindo a mesma percepção profunda, a mesma oração de louvor e pedido de proteção: “Deus Onipotente,/ que estais presente em todo o universo/ e na mais pequenina das vossas criaturas,/ Vós que envolveis com ternura tudo o que existe,/ derramai em nós a força do vosso amor”.

A Encíclica Laudato Sí, no nosso continente, é luz para a caminhada! É a expressão mais profunda de que estas comunidades, muitas vezes invisibilizadas em sua sabedoria, são as portadoras do futuro. São as que hoje, honrando seu passado, trazem do futuro a possibilidade de que neste presente pandêmico e violento sejam cultivadas com persistência inquebrantável pequenas sementes de Redenção. Nestas comunidades, as mulheres, jovens ou idosas, fortes e sábias, analfabetas ou professoras marcam o passo da salvação. São elas as que, na noite escura de um sábado santo estendido, como Maria Madalena e as outras Marias, saem à noite enfrentando seus medos, saem juntas, em comunidade, para trazer notícias de Ressurreição. Estas mulheres, é verdade, ainda esperam um dia, ser plenamente reconhecidas. E, no entanto, seguem rezando, resistindo e fortalecidas também pela Encíclica Laudato Si, esperançam contra toda a desesperança!

Moema Miranda, Rede Igrejas e Mineração